- Terça, 19 Maio 2015 10:19
O novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/15) regula, em seu
artigo 1.071, um procedimento administrativo extrajudicial para o
usucapião de bens imóveis. O dispositivo não cria o usucapião
administrativo, pois o artigo 60 da Lei 11.979/09[2] — Lei do Programa
Minha Casa, Minha Vida — já previa uma figura similar para detentores
de título de legitimação de posse. O que há de novo, contudo, é a
generalização do procedimento a qualquer suporte fático de usucapião em
que haja consenso, ampliando sensivelmente o âmbito de aplicação do
instituto.
Com
base no artigo 1.071, a Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) passa a
ser acrescida do artigo 216-A, que regula o procedimento do usucapião a
ser requerido perante o oficial de registro de imóveis.
O
instituto se insere no fenômeno da desjudicialização ou
extrajudicialização do direito, caracterizado pelo deslocamento de
competências do Poder Judiciário para órgãos extrajudiciais, notadamente
as serventias notariais e registrais (confira-se Veronese, Yasmim.
Leandro; Silva, Caique Leite Thomas da. Os notários e registradores e
sua atuação na desjudicialização das relações sociais. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 4/2014, p. 65).
O
movimento legislativo em questão busca atribuir aos notários e
registradores a solução de questões em que há consenso e disponibilidade
de direitos envolvidos, colaborando com o objetivo de agilizar a
atividade jurisdicional.
Notários,
ou tabeliães, e oficiais de registros públicos, ou registradores, são
profissionais do direito, admitidos mediante concurso público, para
exercer atividade notarial e registral mediante delegação e fiscalização
do Poder Público, em caráter privado.[3] Dotados de fé pública, prestam
serviços públicos voltados a garantir a publicidade, autenticidade,
segurança e eficácia de atos jurídicos (CF, artigo 236; Lei 8.935,
artigos 1º a 3º).
Há
importantes antecedentes legislativos de extrajudicialização, como a
retificação extrajudicial de registro imobiliário (Lei 10.931/04), o
divórcio e o inventário extrajudiciais (Lei 11.441/07), a consignação em
pagamento extrajudicial (artigo 890 do CPC, com redação da Lei
8.951/94), a conciliação em serventias extrajudiciais (vide provimento
12/2013, da Corregedoria-Geral de Justiça do Ceará, que também trata de
mediação), entre outros.
O
usucapião extrajudicial será requerido pelo interessado ao registrador
de imóveis da situação do bem. A ele compete conduzir o procedimento
administrativo que levará ao registro do usucapião, se forem provados os
seus requisitos legais e não houver litígio. A escolha pela via
extrajudicial cabe à parte, que poderá optar por deduzir o seu pedido em
juízo se assim preferir, ainda que não haja litígio.
O
procedimento se inicia a requerimento do usucapiente, respeitando o
princípio da instância que rege o direito registral imobiliário
(vide Carvalho, Afrânio de. Registro de imóveis.
4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, pp. 269-289). A parte deverá estar
assistida por advogado, exigência legal decorrente da complexidade do
ato postulatório. À petição será acostada a prova documental
pré-constituída, para comprovar a posse prolongada pelo tempo exigido no
suporte fático de usucapião invocado, bem como as certidões negativas
de distribuição, que comprovam a natureza mansa e pacífica da posse.
Sobre
os documentos a serem apresentados, inclui-se o justo título, se
houver, prova da quitação de tributos e taxas e quaisquer outros que
evidenciem a posse, como contratos de prestação de serviço no imóvel,
correspondências, etc. O legislador faz referência ainda à apresentação
de ata notarial como meio de prova. A ata notarial, regulada no
artigo 384 do novo CPC, é o instrumento público por meio do qual o
tabelião atesta fato com o qual travou contato por meio de seus sentidos
(Brandelli, Leonardo. Teoria geral do direito notarial.
4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 344-373), decorrendo da função
tipicamente notarial de autenticar fatos (Lei 8.935/94, artigo 6º,
inciso III). É lavrada por tabelião de notas de livre escolha da parte
(e não pelo registrador de imóveis perante o qual corre o procedimento
de usucapião) e acompanhará o requerimento. Difere da escritura
declaratória porque, nesta, é um terceiro que atesta o fato perante o
tabelião, que colhe a manifestação de vontade e a formaliza. Assim, para
lavrar a ata, o notário ou seu preposto devidamente autorizado deverá
se deslocar até o imóvel e lá poderá verificar a exteriorização da
posse, diante das circunstâncias do caso. Nada obsta a que testemunha da
posse do requerente compareça ao tabelionato e declare sob as penas da
lei os fatos que presenciou, sendo a escritura declaratória lavrada e
apresentada ao oficial de registro de imóveis.
O
requerimento também deverá ser acompanhado da planta do imóvel, com
memorial descritivo e anotação de responsabilidade técnica. A ART é a
prova de que a planta e o memorial foram elaborados por profissional
habilitado perante o conselho profissional competente. A planta ainda
desempenha uma importante função, pois é nela que os confinantes e os
titulares de direitos sobre o imóvel usucapiendo assinam, manifestando
sua anuência ao pedido e caracterizando o consenso no usucapião.
Recebida
a petição, devidamente instruída, o oficial de registro procederá à
prenotação no livro de protocolo e a autuará. Se falta algum documento,
formulará nota devolutiva entregue ao requerente, para que supra a
ausência. Se algum interessado não tiver assinado a planta, procederá à
sua notificação, para que se manifeste em quinze dias. Deverá ainda
notificar a Fazenda Pública, municipal, estadual e federal, para deduzir
eventuais impugnações em igual prazo de quinze dias. Em seguida,
publicará edital em jornal de grande circulação, às expensas do
requerente, para dar ciência a terceiros que, em prazo de trinta dias,
poderão impugnar o pedido.
A
impugnação da Fazenda Pública consiste em alegar que o imóvel é público,
se for o caso, e portanto inusucapível (neste sentido, neste sentido,
Miranda, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil.
Rio de Janeiro: Forense, tomo XIII, 1977, pp. 381-382). Os terceiros
poderão apresentar quaisquer impugnações contrárias à consumação do
usucapião, enquanto que aos confinantes ou titulares de direitos reais
sobre o imóvel notificados cabe impugná-lo ou prestar a anuência que não
foi outorgada mediante assinatura na planta. As manifestações deverão
ser deduzidas por escrito e protocoladas perante a serventia
extrajudicial.
Vale
ressaltar um ponto importante da regulamentação normativa: se o
confinante ou titular de direitos reais não se manifestar, não se
presume sua anuência. A solução adotada é oposta à vigente na
retificação extrajudicial, em que o silêncio do confinante notificado
implica concordância tácita (Lei de Registros Públicos, artigo 213,
parágrafo 5º). Com a cautela legislativa, a segurança jurídica foi
privilegiada em detrimento da efetividade. Um estudo estatístico que
analise o número de retificações administrativas em comparação com o de
contestações judiciais posteriores pode servir para confirmar a solução
do novo artigo 216-A, ou para indicar a necessidade de sua reforma
posterior.
Prevê o legislador ainda que o registrador poderá realizar diligências in loco,
para elucidar dúvidas que tenham restado da análise da documentação.
Esta faculdade do delegatário deve ser exercida com a necessária
cautela, pois ordinariamente o oficial não tem formação técnica em
engenharia e a inspeção deve se proceder dentro do que é possível
verificar sem essa habilitação específica (neste sentido, CENEVIVA,
Walter. Lei dos registros públicos comentada. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 494).
Se
qualquer das partes interessadas apresentar impugnação, o registrador
remeterá os autos ao juízo competente, para apreciação. Nesse caso, cabe
a emenda da inicial, para ajustá-la às exigências do processo judicial.
Se a documentação é insuficiente e o requerente não se conformou com as
exigências formuladas, pode requerer a suscitação de dúvida (Lei de
Registros Públicos, artigo 198), para que o juiz decida, no âmbito
administrativo.
Se
não há impugnação ou nota devolutiva desatendida, caberá ao registrador
apreciar o pedido. A decisão do registrador pressupõe a qualificação,
atividade administrativa vinculada privativa de profissional do direito
em que são examinados os títulos apresentados a registro e verificado o
preenchimento dos requisitos legais do ato registral No procedimento de
usucapião extrajudicial, se a qualificação for positiva, o oficial
procederá ao registro da aquisição do direito real na matrícula. Se o
imóvel não for matriculado, efetuará a abertura da matrícula e o
registro, seu primeiro ato. Se negativa, terá de fundamentar a decisão,
indicando quais dos requisitos legais não foi atendido. A decisão que
negar o pedido administrativo não obsta o ingresso com ação judicial de
usucapião.
Sem
prejuízo de possíveis e legítimas críticas a algumas das opções do
legislador, o procedimento extrajudicial parece estar apto a atribuir
solução mais ágil e eficiente ao usucapião consensual e a se tornar um
instrumento tão útil quanto são o inventário, o divórcio e a retificação
desjudicializados, contribuindo para legalizar situações consolidadas e
promover regularização fundiária.
(Fonte: Colégio Notarial do Brasil, com informações do Portal ConJur - Roberto Paulino de Albuquerque Júnior)