Já escrevi nesta coluna (Ações para mudança de sexo e nome e a intervenção do Ministério Público,
de 2 de outubro de 2017) que “a Constituição Cidadã prescreve em seu
preâmbulo a instituição de um Estado Democrático de Direito, impondo a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna e
pluralista sem preconceitos, mandamento que é corroborado pelo art. 1º,
inciso III, que impõe a dignidade da pessoa humana como fundamento da
República, e ainda pelo art. 3º, inciso IV, que dispõe que constitui
objetivo fundamental a promoção do bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação. Referidos valores foram ratificados pelos Princípios de
Yogyakarta, estabelecidos em conferência na Indonésia visando o
estabelecimento de parâmetros de concretização de respeito à diversidade
sexual”.
“Nesse contexto e baseando-se nesses
valores, tem se verificado um incremento nos pedidos judiciais de
mudança de sexo — e de nome — por pessoas que não se identificam mais
com o sexo biológico de nascença nem tampouco com seu nome, mas com o
gênero oposto. Tal pretensão se funda na desconformidade entre o sexo
biológico e o sexo psicológico da pessoa, condição conhecida por
transexualismo ou disforia de gênero (transtorno de identidade de
gênero).”
Decorre daí que, para ajustar o sexo
jurídico ao sexo psicológico com o qual se identifica, a pessoa nessa
condição deveria atender a pelo menos dois requisitos básicos: a)
ajuizar ação judicial para esse fim; b) fazer prova dessa condição
mediante exibição de relatórios médico e psicológico. Houve casos (em
menor número) em que o Judiciário ainda exigia a realização da cirurgia
de transgenitalização ou redesignação de sexo como condição para a
mudança pretendida.
A intervenção do Ministério Público
nessas ações se fundava no artigo 109 e seu parágrafo 1º da Lei
6.015/73, porquanto se tratava de retificação de dado essencial do
assento público, configurando verdadeira ação de estado (que diz
respeito às questões de nacionalidade, mudança de sexo e também
capacidade civil, dentre outros direitos da personalidade e dignidade
humana).
Contudo, recentemente o Supremo
Tribunal Federal, ao término do julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4.275, por maioria de seus ministros, por
interpretação conforme ao artigo 58 da Lei 6.015/73, acabou por conferir
aos transgêneros/transexuais o direito de requerer a substituição do
prenome e sexo diretamente no cartório de registro civil, mediante
requerimento administrativo, independentemente da realização de
cirurgias, tratamentos hormonais ou outros, dispensando, inclusive, a
demonstração ou prova dessa condição.
Sendo assim, o direito à substituição
do prenome e do sexo constantes em registro civil passou a ser
potestativo, não mais dependendo de comprovação da condição da pessoa,
tampouco de manifestação ou ação judicial. Outrossim, embasado nessa
decisão, o CNJ houve por bem regular a matéria com a edição do
Provimento 73, de 28 de junho de 2018, orientando como deverá se dar a
averbação dessa pretensão no âmbito administrativo.
Nesse cenário, por via reflexa, o STF
acabou por desjudicializar não somente as pretensões de alteração de
assento de registro civil que tenha por objeto a mudança de nome ou
sexo, como também aquelas que tenham por finalidade a alteração de nome
por escolha do interessado. Afinal, se a ação judicial é desnecessária
para a mudança dos dois elementos mais essenciais e representativos do
registro civil — como o nome e o sexo —, também deverá ser dispensada,
ao nosso ver, para as hipóteses menos importantes, como modificações de
prenome ou substituição por apelido notório.
Tem lugar aquele velho adágio: “Quem pode o mais pode o menos”.
Já não era sem tempo, pois algumas
dessas modificações já podiam ser pleiteadas diretamente no cartório de
registro civil mediante a exibição dos documentos necessários pelo
interessado, porquanto não apresentam qualquer conteúdo de indagação ou
litigioso, do qual o Judiciário deve se ocupar com exclusividade.
Como é cediço, as retificações de
registro civil podem ser realizadas pela via judicial ou administrativa,
conforme o caso. O artigo 13, inciso I, da Lei 6.015/73 permite que
alguns atos do registro civil possam ser praticados a requerimento
verbal ou escrito dos interessados, independentemente de ordem judicial.
A lei registral já possibilitava a
modificação do nome e do assento sem necessidade de ação judicial,
conforme disposto nos artigos 56 e 110, nos seguintes casos: I) o
interessado que, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil,
poderá alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de família;
II) erros que não exijam qualquer indagação para a constatação; III)
erro na transposição dos elementos constantes em ordens e mandados
judiciais, bem como de outros títulos; IV) inexatidão da ordem
cronológica e sucessiva da numeração do livro, da folha, da página, do
termo e da data do registro; V) elevação de distrito a município ou
alteração de suas nomenclaturas por força de lei. Com a mudança
introduzida pela Lei 13.484/2017, deixou de ser necessária, inclusive, a
oitiva do Ministério Público nesses casos de retificação administrativa
de erros mais simples ou que não exijam qualquer indagação.
Outras situações vinham ensejando
autorização judicial, tais como: VI) as questões de filiação (art. 113);
VII) averbação do patronímico do companheiro pela mulher (art. 57,
§2º); VIII) alteração de nome em razão de fundada coação ou ameaça
decorrente de colaboração com a apuração de crime (art. 57, §7º e 58,
parágrafo único); IX) averbação do nome de família do padrasto ou da
madrasta pelo enteado (art. 57, §8º); X) modificação de nome pelo
interessado fundado em motivo relevante (art. 57, caput); XI)
substituição do prenome por apelidos públicos notórios (art. 58).
Há, ainda, a hipótese de decisão pelo
juiz quando os pais não se conformarem com a recusa do oficial quanto
ao prenome suscetível de expor ao ridículo a pessoa (art. 55, parágrafo
único) (XII). Nesse caso, a competência é do juiz corregedor permanente
do cartório de registro civil de determinada região.
De todas essas hipóteses, aquelas
enumeradas nos itens I a V podem ser objeto de retificação/modificação
pela via administrativa, ou seja, diretamente no cartório de registro
civil. Acrescente-se a elas, agora, em virtude da referida decisão do
STF, a possibilidade de alteração de nome e sexo diretamente pela via
administrativa, desde que atendidos pelo interessado os requisitos do
Provimento nº 73 do CNJ.
Ao nosso ver, com a desjudicialização
promovida pelo STF, as hipóteses de modificação de nome pelo
interessado fundado em motivo relevante (hipótese X) e substituição do
prenome por apelidos públicos notórios (hipótese XI) também deverão ser
doravante permitidas através da via administrativa, dependendo somente
de regulamentação pelo CNJ, pelas mesmas razões que fundamentaram a
decisão proferida na referida ADI, ou seja, “a alteração dos assentos no
registro público depende apenas da livre manifestação de vontade da
pessoa que visa expressar sua identidade de gênero. A pessoa não deve
provar o que é e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade
a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental”, conforme
observado pelo ministro Fachin em seu voto no julgamento já referido.
Ora, se cabe ao próprio interessado a
decisão sobre a mudança de sexo e nome, também a ele deveria caber
decidir se deseja mudar seu nome em razão de motivo relevante ou para
substituir apelidos públicos notórios. Como se sabe, o nome é elemento
da identidade pessoal, devendo sua mudança depender exclusivamente de
sua vontade. Por outro lado, desnecessária a prévia autorização
judicial, pois se surgir situação que possa caracterizar fraude, caberá
ao oficial do registro civil a instauração de procedimento de dúvida, a
ser dirimido pelo juiz.
Os demais casos enumerados nos itens
VI a IX, em razão de expressa disposição legal, bem como por envolverem
interesse de terceiros ou interesse indisponível, devem permanecer
dependendo de manifestação judicial.
É esperada, diante de tão importante
decisão exarada pelo STF, uma mudança de hábito dos operadores de
direito, de modo a passarem a formular as pretensões diretamente nos
cartórios de registro civil, deixando, assim, de levar ao Judiciário
tais demandas, exceto nas hipóteses onde o pronunciamento judicial ainda
se faz necessário. Tomem-se como exemplo alguns dos casos de
retificação para obtenção de cidadania estrangeira, que se adequam
perfeitamente às hipóteses dos itens II e III, podendo ser pleiteados
diretamente no âmbito administrativo. Convém observar que a previsão da
via administrativa do art. 110 da Lei 6.015/1973 consiste numa opção do
interessado que, se reputar conveniente, poderá valer-se da via
judicial.
Por fim, não sendo mais necessária a
judicialização nesses casos, a intervenção do Ministério Público em
pedidos de retificação de registro civil deverá se circunscrever às
hipóteses em que permanece sendo necessário o pronunciamento judicial.
Outrossim, ainda que o interessado em retificação de sexo e nome tenha
optado pela via judicial, não se vislumbra mais hipótese de intervenção
do Ministério Público nesse caso, porquanto se o direito poderá ser
buscado diretamente no cartório de registro civil pelo interessado, onde
não se faz necessária a oitiva do MP, operou-se evidente mudança de
categoria desse direito, que deixou de ser considerado como ação de
estado, tornando desnecessária a atuação do órgão interveniente, a
conferir e a depender de orientação de seus órgãos da administração
superior e de controle interno.
Nos demais, quando chamado a
intervir, o Ministério Público deverá permanecer atuando para zelar,
nessas ações, pela observância dos princípios da legalidade,
publicidade, segurança jurídica e eficácia dos atos jurídicos, dignidade
da pessoa humana, dentre outros.
Rogério Alvarez de Oliveira é promotor de Justiça e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático.
Fonte: Conjur