- Quinta, 08 Outubro 2015 10:21
“O requisito do ‘abandono do lar’ deve ser interpretado na
ótica do instituto da usucapião familiar como abandono voluntário da
posse do imóvel, somando à ausência da tutela da família, não importando
em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável.
Revogado o Enunciado 499”.
Com este texto, foi aprovado durante a VII Jornada de Direito Civil, no último mês, em Brasília-DF, enunciado que trata da Usucapião Familiar. O artigo de referência do enunciado é o 1.240-A do Código Civil, que determina que o cônjuge ou companheiro que exercer a posse direta com exclusividade, por dois anos, sobre o imóvel em que divida a propriedade com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquire o domínio integral da propriedade.
Para o advogado Ricardo Calderón, professor de Direito Civil e
membro do IBDFAM, o enunciado pode contribuir para uma adequada tradução
da usucapião familiar. Isto porque, até hoje, o instituto vem sendo
objeto de debate na doutrina e na jurisprudência, especialmente sobre
qual seria o seu sentido e qual a extensão dos seus requisitos
aquisitivos.
“O texto legal, em linhas gerais, dispõe apenas que o
ex-cônjuge ou ex-companheiro poderá adquirir a propriedade total do
imóvel objeto do lar conjugal, desde que demonstrada posse superior a
dois anos ininterruptos, agregada ao abandono do lar pelo outro
consorte. Desde então, debate-se a extensão de tal modalidade de
usucapião, primordialmente qual o significado atual para a expressão
‘abandono do lar’, utilizada no texto de lei como um dos seus requisitos
expressos”, diz.
Esta dúvida, segundo o advogado, vinha gerando certa
insegurança jurídica, pois não havia consenso sobre qual conduta, nos
dias de hoje, configuraria o “abandono do lar”. Este impasse, conforme
explica Calderón, poderia aumentar a litigiosidade, com mais pedidos de
separações de corpos e afastamento do lar, apenas para evitar configurar
alguma espécie de abandono ou, ainda, poderia levar algumas pessoas a
permanecerem morando juntas – mesmo estando em conflito – apenas para
não configurar tal abandono do lar, na tentativa de evitar perder sua
parte no imóvel.
“Diante disso, é bem-vindo o novo enunciado, visto que pode
contribuir na escorreita interpretação da usucapião familiar, o que
certamente auxiliará na busca pela pacificação de tais conflitos”, diz.
Ricardo explica que o enunciado pretende traduzir a expressão “abandono do lar” como um verdadeiro abandono familiar,
no sentido de agregar ao abandono voluntário da posse do imóvel também o
abandono da tutela da família, ou seja, um desamparo por parte daquele
que deveria ser seu provedor.
“Em outras palavras, agrega como elemento caracterizador do
abandono do lar um abandono da tutela da família, o que pode ser
compreendido como o não atendimento das responsabilidades familiares e
parentais incidentes no caso concreto, um desassistir que venha a trazer
dificuldades materiais e afetivas para os familiares que restaram
abandonados. Exemplificando: não prestar alimentos, não contribuir para
as despesas do lar, não manter os vínculos afetivos com os demais
integrantes da família, dentre outros”, diz.
Interpretação anterior
De acordo com o advogado Ricardo Calderón, durante grande parte do século XX a expressão “abandono do lar” foi utilizada como uma coerção que tinha como objetivo principal evitar que as mulheres deixassem o lar conjugal, mesmo em situações que lhes eram adversas e degradantes.
Atualmente, a doutrina majoritária sustenta que tal modalidade
de usucapião familiar visa tutelar a família e o direito à moradia.
Diante disso, segundo o advogado, é necessário traduzir qual o sentido
contemporâneo para o “abandono do lar”.
O especialista destaca que, no estágio atual, tal abandono não
deve guardar apenas uma relação exclusiva com o uso do bem (posse), mas
sim exige também uma necessária vinculação com uma adequada tutela e
proteção da família.
“Impõe buscar um sentido hodierno de abandono do lar, que o
permita transitar tanto no direito das coisas como no direito de
família, de modo a densificar as normas constitucionais que o
fundamentam e, muito mais do que apenas expor sua estrutura, reverberar
sua função no nosso sistema, na esteira do que ensinou Norberto Bobbio
na sua obra clássica Da estrutura à Função”, diz.
Para Calderón, o sentido atual de “abandono do lar” não pode
significar nem a busca por um culpado pelo término da relação, nem estar
restrito, exclusivamente, à retirada física do imóvel, conforme define o
enunciado. “Daí o seu acerto, que claramente informa que o abandono do
lar não guarda relação com a averiguação de um culpado pelo fim do
relacionamento e, ainda, resta vinculado também a um abandono da própria
família”, diz.
(Fonte: Colégio Notarial do Brasil)