Publicado em: 23/09/2015
Este ano, comemora-se uma data muito especial para os tabeliães
brasileiros: 450 anos da criação do notariado na cidade do Rio de
Janeiro.
De acordo com Deoclécio Leite de Macedo, brilhante paleógrafo
brasileiro que dedicou parte de sua vida na tentativa de constituir a
história do notariado brasileiro, compulsando velhos livros de registro
em busca de elementos que naturalmente se acham esparsos, “o primeiro
ofício de tabelião público do Judicial e Notas do Rio de Janeiro, de
acordo com o costume português, foi criado juntamente com a cidade, pelo
capitão Estácio de Sá, em 1º de março de 1565. Pero da Costa foi
nomeado seu primeiro serventuário. Por provisão de Mem de Sá, em 20 de
setembro de 1565, foi anexado a esse ofício o de escrivão das Sesmarias.
Pero da Costa renunciou, então, ao ofício de tabelião do Judicial,
acumulando, somente, as funções de tabelião de Notas e escrivão das
Sesmarias.”[1]
Muitos, entretanto, afirmam que a experiência da atividade notarial no
Brasil é anterior ao 1º Oficio do Rio de Janeiro e remonta às expedições
portuguesas do grande capitão Martim Afonso de Souza, que teria
trazido, a bordo da famosa esquadra por ele comandada, 2 tabeliães,
oficiais que teriam sido escolhidos e nomeados ainda em Portugal,
conforme se lê da Carta de Poder de 20 de novembro de 1530 conferida por
D. João III. Registrava o monarca que para a tomada de posse das terras
bem como “para as coisas da Justiça e governança da terra” seria
necessário criar tabeliados. [2]
Na verdade, pouco importa saber a origem exata da história do notariado
no Brasil. A própria instituição do notariado em escala mundial se
perde nas brumas do tempo. O que vale dizer é que dentre as diversas
funções ou profissões surgidas com o desenvolvimento da sociedade, a
atividade do notário é uma das poucas que ainda perdura. “Enquanto as
instituições mais veneráveis e poderosas ruíram com o passar dos
séculos, o notariado atravessou incólume a Queda do Império Romano, as
trevas da Idade Média e até mesmo a sangrenta revolta do povo contra a
aristocracia. A Revolução Francesa demoliu antigas instituições, mas o
notariado foi preservado e revigorado.”[3]
E, no Brasil, o mérito do notariado é enorme e atravessa gerações. Nas
palavras de Carlos Fernando Brasil Chaves, presidente do Colégio
Notarial do Brasil – Subseção São Paulo, é a verdadeira história
guardada em livros oficiais, pois ela demonstra o comportamento da vida
social, das relações interpessoais, da aquisição patrimonial, dos
valores morais, do comportamento familiar, do altruísmo ou do egoísmo,
ou seja, reflexo fundamental e indissolúvel das características da
sociedade. Segundo ele, talvez nenhuma outra instituição seja capaz de
retratar de forma tão fiel a transmutação da vida brasileira.[4]
Realmente, qual outra instituição poderia pretender tamanhas
experiência e estabilidade senão aquela que serve à boa-fé dos negócios
jurídicos, à segurança das convenções, à publicidade dos atos e fatos
jurídicos, ao rechaço da fraude e a garantia da validade e da eficácia
de todas as trocas e do comércio humano?[5]
O tabelião, que é profissional de direito, com conhecimentos jurídicos e
técnicos, garante a identidade e capacidade das partes, a legalidade
dos atos, a conservação desses e sua validade “erga omnes”,
desempenhando um importante papel de mantenedor da paz social, eis que
sua atuação previne litígios e traz segurança jurídica. Em outras
palavras, a noção própria da função notarial é obter o bem comum, a paz
social, o que é uma prerrogativa apenas do Notário do tipo latino.
Com efeito, o tabelião latino, compreendendo os notários de todos os 86
países membros da União Internacional do Notariado, dentre eles, os
brasileiros, distingue-se muito do notário anglo-saxão, esse último
típico dos países regidos pela Common Law, como os Estados Unidos e
muitos países da União Européia. Enquanto as atribuições do notário
anglo-saxão são limitadas à autenticação de assinaturas e de cópias, à
tirada do protesto cambial e, em geral, a tomada de juramentos não
judiciais, as do tabelião latino são muito mais abrangentes, englobando a
feitura de documentos que constituem atos jurídicos. De acordo com
Poisl, “essa autoria assumida pelo tabelião latino garante a plena
eficácia do documento, pois que é fiadora da identidade, capacidade e
legitimidade das partes, da legalidade de todo o texto, do cumprimento
das exigências fiscais.”[6]
Enquanto o notário do sistema latino deve ser um profissional do
Direito, com formação jurídica adequada para redigir os atos que lhe são
apresentados, o notário do sistema anglo-saxão, o Notary Public, por
não ter formação jurídica, está proibido de oferecer assistência às
partes e de redigir quaisquer documentos em que se exija conhecimento
especializado. Consequentemente, nesse último sistema, desconhece-se o
documento autêntico, a sua eficácia de fé pública e a figura do notário
como autor desta.
Desta forma, de acordo com Mônica Jardim, o sistema latino de notariado
é o único que realmente realiza a prevenção de litígios, ou seja, “é o
único que gera uma segurança jurídica preventiva ao lado da segurança
corretiva, reparadora ou a posteriori, que decorre da decisão judicial.”
Segundo ela, a “segurança preventiva não existe nos países
anglo-saxónicos, nos quais a função notarial, na limitada medida em que
existe, é externa, posterior e sobreposta ao documento.” O notário do
sistema anglo-saxão é estranho ao conteúdo do documento e a fé pública
ou autenticidade não atinge esse conteúdo.[7]
Veja-se o exemplo dos problemas oriundos da falta de transparência no
mercado imobiliário norte-americano, que bem reflete o que aqui se quer
demonstrar. No texto “Fraudes imobiliárias, cartórios e burocracia”,
postado em 08.02.2009 no site www.observatoriodoregistro.com.br, Sérgio
Jacomino noticia uma nova modalidade de fraude, a “identity theft
mortgage”, algo como subtração de identidade pessoal e hipoteca, ou
simplesmente roubo de casas. Isso porque como não há nos Estados Unidos
um sistema registral que permita a conferência da real titularidade do
domínio dos bens, os fraudadores, de posse de uns poucos dados sobre os
imóveis e os proprietários, formalizam empréstimos bancários, oferecendo
os imóveis em garantia, e até mesmo vendendo-os ou transferindo-os para
seus próprios nomes.[8]
Se nos Estados Unidos houvesse a assistência de um profissional como os
notários dos regimes da civil Law (Notariado Latino), como ocorre no
Brasil, onde o tabelião é um profissional de Direito treinado para dar a
necessária assessoria jurídica aos contratantes, interpretando as
cláusulas contratuais, certamente as fraudes seriam coibidas de forma
mais eficiente.
Desta forma, pode-se dizer, com segurança, que a presença do notário do
sistema latino em todas as sociedades organizadas é imperiosa para
assegurar a eficácia às convenções negociais e evitar fraudes, na medida
em que seus atos são dotados de presunção de exatidão (fé pública) e
legalidade. Aliás, quanto mais complexa a sociedade, e, portanto, maior a
gama de negócios jurídicos a vincular as pessoas e contribuir para o
progresso econômico, maior a importância dos notários, profissionais de
direito que têm por missão dar segurança e publicidade a fatos jurídicos
que a todos interessam e afetam.
A instituição do Notariado é “a expressão do tempo, do espaço e da cultura do país.”[9]
Seu papel é fundamental na construção da pacificação social e da
justiça. Por isso, independentemente da precisão histórica de sua origem
no Brasil, vamos comemorar com louvor os 450 anos (ou mais) desta
atividade tão essencial ao desenvolvimento do país!
José Flávio Bueno Fischer é oficial do 1º Tabelião de Novo
Hamburgo/RS, ex-presidente do CNB-CF e membro do Conselho de Direção da
UINL
Fonte: Colégio Notarial do Brasil